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Entrevista Roger Chartier

Roger Chartier é professor emérito do Collège de France, da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris) e Annenberg Visiting Professor na Universidade da Pensilvânia. O seu campo de estudo é a cultura escrita na primeira modernidade (séculos XVI-XVIII): história dos textos, da edição e da leitura.

Estará em Portugal de 26 a 30 de maio, onde participará em vários encontros em torno dos livros, da história e do pensamento.

  • Segunda-feira, 26 de maio | 18h00 | Biblioteca Nacional de Portugal
    Participação no lançamento da revista Electra – Com Antonio Guerreiro e Diogo Ramada Curto

  • Terça-feira, 27 de maio | 9h30 | Academia das Ciências de Lisboa
    Conferência inaugural “Cervantes ou a importância dos Clássicos” seguida de mesa-redonda “A atualidade dos clássicos: Cervantes e Camões”
    Com Isabel Almeida, Henrique Leitão e José Bernardes
    Colóquio “Camões e as Ciências”

  • Quinta-feira, 29 de maio | 19h00 | Nouvelle Librairie Française
    Ciclo de conferências “Et si l’on parlait de… livres et de lecteurs/trices”
    Diálogo entre Roger Chartier e Alberto Manguel

  • Sexta-feira, 30 de maio | 19h00 | Mediateca do Institut français du Portugal
    Apresentação da tradução portuguesa de Ouvir os mortos com os olhos de Roger Chartier (ed. Tinta-da-China)
    Com Roger Chartier e Rui Tavares

 

Antes da sua chegada, Guillaume Boccara, adido de cooperação universitária e científica do Instituto Francês de Portugal, encontrou-se com ele. Juntos, conversaram sobre história cultural, materialidade do livro, novos modos de leitura e a noção de autor.

 

Guillaume Boccara:
Caro professor Roger Chartier, estará muito brevemente em Portugal (cf. programa online) para uma série de atividades (conferências, seminários, mesas-redondas) entre Lisboa e Coimbra. A sua obra, rica e original, centra-se na história do livro e da cultura escrita, integrando uma abordagem simultaneamente social e cultural da história. Poderia explicar-nos brevemente o que se entende por história cultural?

Roger Chartier:
Definir de forma clara e única a história cultural não é simples, porque a própria definição de cultura é problemática. A cultura pode ser entendida, por um lado, como o domínio específico das criações intelectuais e artísticas, ou, por outro lado, como o conjunto de símbolos, concepções e práticas que organizam as relações das comunidades e dos indivíduos com o mundo social, a natureza ou o sagrado. O que caracteriza a “história cultural” reside, sem dúvida, na articulação entre estas duas definições. Daí a sua dupla dimensão, seguindo Carl Schorske: situar cada obra intelectual ou estética na sua relação com as que a precederam (imitação, paródia, ruptura) e inscrevê-la no conjunto das representações e experiências sociais que constroem os seus significados. Esta perspetiva permite deslocar ou apagar as fronteiras que delimitam de forma demasiado rígida e compartimentada diferentes histórias: história das ideias, história da arte, história da educação, etc. Esta abordagem ganha sentido no estudo de objetos particulares: uma obra literária, filosófica ou artística, as modalidades de publicação e circulação de textos ou imagens, ou uma prática social — por exemplo, a leitura.

Guillaume Boccara:
É conhecido e reconhecido internacionalmente pelas investigações que desenvolve há várias décadas sobre a história do livro ou, para usar as suas próprias palavras, sobre a história “das formas e dos suportes da escrita e das maneiras de ler”, bem como “das formas que conferem existência aos livros e das apropriações que os investem de sentido” (cf. Ouvir os mortos com os olhos, Aula inaugural no Collège de France proferida em 2007, traduzida e publicada pela editora portuguesa Tinta-da-China em maio de 2025). Poderia explicar-nos em que medida a materialidade e as diversas formas do livro são absolutamente essenciais para compreender o papel que a cultura escrita e a leitura desempenharam na história, nomeadamente na construção dos Estados, das burocracias e da esfera pública? Porque tendemos a interessar-nos mais pelo conteúdo de um livro do que pela sua materialidade. E o professor alerta-nos: atenção! “rolo”, “códice”, “livro digital”, não são a mesma coisa…

Roger Chartier:
As obras parecem atravessar o tempo permanecendo sempre idênticas a si mesmas. Hamlet é Hamlet para todos os que, ao longo dos séculos, viram, leram, representaram ou comentaram a peça. No entanto, o encontro com esta obra foi sempre mediado pela sua leitura numa edição particular, pela sua audição numa encenação específica, pela sua descoberta numa língua que não é necessariamente a do dramaturgo. David Scott Kastan designou como “platónica” a conceção que considera que as obras transcendem todas as suas possíveis encarnações e como “pragmáticas” as relações estreitas entre a construção do significado das obras e as formas da sua publicação.

Para mim, a mobilidade dos textos e a materialidade das obras estão intimamente ligadas e obrigam-nos a considerar cinco razões que produzem a pluralidade de textos de uma mesma obra: o regime da sua atribuição, entre nome de autor e anonimato; as variantes textuais de uma edição para outra; as formas materiais da sua publicação e circulação; as migrações de uma “mesma” obra entre géneros e entre línguas; e, finalmente, as expectativas, modalidades e práticas de leitura.

Todos os textos, literários ou técnicos, religiosos ou administrativos, científicos ou filosóficos, foram transformados, em graus diversos, por estas variações. Esta foi a razão de ser da minha cátedra no Collège de France e o objeto central das minhas investigações, publicadas ou em curso.

Guillaume Boccara:
Nesta mesma Aula inaugural de 2007, na qual enunciou aquele que viria a ser o seu programa de investigação no âmbito da Cátedra “Escrita e culturas na Europa moderna”, observa que, embora a leitura já tenha conhecido várias revoluções — nomeadamente a passagem do rolo para o códice — a que vivemos hoje com o digital e o livro eletrónico tende a operar mudanças sem precedentes. E, contrariamente ao que se possa pensar, afirma que a leitura diante do ecrã “não é a herdeira longínqua das práticas permitidas e suscitadas pelo códice”! Poderia explicar-nos por que razão a textualidade digital apresenta desafios radicalmente novos que tendem a alterar profundamente as nossas formas de ler, de nos emocionarmos através da leitura, de nos relacionarmos com os outros e, por fim, e não menos importante, de concebermos a própria noção de autor/a?

Roger Chartier : Ao romper o antigo laço entre o texto e o objeto onde está inscrito, entre os discursos e suas materialidades próprias, o mundo digital obriga a uma radical revisão dos gestos e das noções que associamos à escrita.  Não devemos menosprezar a originalidade do nosso presente. As diferentes transformações da cultura escrita que no passado foram sempre separadas se apresentam simultaneamente no universo digital. A revolução da comunicação eletrônica é ao mesmo tempo uma revolução da técnica de produção e reprodução dos textos, uma revolução da materialidade e da forma de seu suporte e uma revolução das práticas da leitura. Se estabeleceu assim uma nova ecologia da escrita, caracterizada por vários rasgos.

O primeiro é o uso do mesmo suporte para ler e escrever. No mundo pre-digital eram separados os objetos destinados à leitura dos textos impressos (os livros, revistas ou jornais) e os objetos que recebiam as escrituras pessoais (folhas, cadernos, cartas). No mundo electrónico, é sobre a mesma tela que se associam estreitamente as duas práticas dos novos “wreaders”, leitores que escrevem e escritores que leem. Uma segunda característica do mundo digital estabelece uma continuidade morfológica entre a diferentes categorias de discurso: mensagens das redes sociais, informações dos websites, livros ou artigos electrónicos. Desaparece assim a percepção de sua diferença a partir de sua materialidade própria. Esta continuidade apaga os procedimentos tradicionais da leitura, que supõem tanto a compreensão imediata, graças à sua forma publicação, do tipo de conhecimento ou prazer que o leitor pode esperar de um texto, quanto a percepção das obras como obras em sua identidade, totalidade e coerência. Daí, uma terceira característica. Sobre a superfície luminosa da tela aparecem fragmentos textuais sem que se possa ver imediatamente os limites e a coerência do texto ou do corpus (livro, número de revista ou de periódico) de onde são extraídos. A leitura descontinua, segmentada, dos textos digitais da autonomia aos fragmentos, transformados em unidades textuais descontextualizadas.

É a razão pela qual devemos convencer as instituições, os poderes públicos e os leitores de hoje que as várias formas de inscrição, publicação e apropriação dos escritos não são equivalentes e que, por onde, uma não pode ou não deve substituir-se a outra.

Com a inteligência artificial generativa se encontram ameaçados os conceitos fundamentais da cultura escrita definida a partir do século XVIII pela ligação entre as noções de originalidade das obras, de responsabilidade autorial e de propriedade intelectual. O mundo da IA está caracterizado pela disponibilidade pública dos escritos, pelo anonimato da escrita automática e pelo reuso ou plagio dos textos já escritos. Assim, a revolução dos agentes conversacionais é não somente uma revolução técnica do acesso a informação (como foram a aparição da escrita, a invenção da impressa ou a revolução da internet), senão também uma ruptura radical com as categorias mais essenciais que   construíram nossa ordem dos discursos.

 

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