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Regressamos à Noite das Ideias 2023 em Portugal

Em 2023, pela primeira vez, o Institut français du Portugal leva a Noite das Ideias a três cidades do país: em Lisboa, no Porto e em Saboia no Alentejo. Depois de quatro edições na Fundação Gulbenkian, este ano foi adotado um formato diferente, para se dirigir a novos públicos e ocupar novos espaços – a Culturgest, em Lisboa, a Reitoria da Universidade do Porto e a Moagem de Sabóia, em Santa Clara.

Sob a curadoria de António Guerreiro e em parceria com a revista Electra, a Noite das Ideias fez ressoar ao longo de setembro o tema global da edição de 2023: “Mais?”.

A partir desta palavra simples e quotidiana, António Guerreiro explora o conceito de hipertelia, a lógica de ir além dos próprios fins. Esta reflexão foi dividida em 4 temas: género e aceleração em Lisboa, as metamorfoses da cidade no Porto e os desafios da paisagem em Saboia.

 

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A Noite das Ideias abriu no dia 17 de setembro na Culturgest, em Lisboa, para uma casa cheia, com a performance do filósofo queer Paul B. Preciado, Eu sou o monstro que vos fala, no âmbito da BoCA – Bienal de Artes Contemporâneas.

Esta obra singular apresenta uma conferência proferida por Preciado em Paris, em 2019, para um público de psicanalistas, no âmbito de um colóquio dedicado a “La question de la femme”. No seu discurso provocador, Preciado questiona os fundamentos sobre os quais a psicanálise foi construída e expõe a sua visão do mundo, convidando-nos a repensar as fronteiras entre os géneros.

Ao repensar e ao fazer recuar as fronteiras, para permitir que cada pessoa invente a sua própria identidade, surge uma forma de proliferação – a do “mais” no final do acrónimo LGBTQIAP+. Foi este o tema da primeira mesa redonda, “Género: plural, escandalosamente plural”, com a realizadora Cláudia Varejão, a psicanalista Sinziana Ravini e o investigador e ativista P. Feijó.

O debate prosseguiu com uma instalação culinária, “O Sabor da Noite”, criada pelo coletivo NaMesa. Este banquete rococó e decadente jogou com as nossas percepções e preconceitos, esbatendo as fronteiras entre o doce e o salgado em bolos e cocktails multicoloridos… Ilustrando in situ que, embora as ideias possam ser discutidas e debatidas, também podem ser provadas, com os olhos e as papilas gustativas.

A segunda parte da noite foi dedicada a um outro fenómeno igualmente contemporâneo: a grande escalada da aceleração e da velocidade.

Mas para refletir sobre a velocidade, é preciso tomar um tempo. O público foi presenteado com a projeção de quatro curtas-metragens da coleção do Centre National d’Arts Plastiques, reunidas sob o título “L’éloge de la lenteur” (” O elogio da lentidão”). Estas obras, realizadas entre 2000 e 2013 pelo coletivo Superflex, Edith Dekyndt e Michel François, mostram os ritmos lentos do corpo, os gestos lentos do trabalho improdutivo e, ao fazê-lo, fazem uma apologia sediciosa do ócio.

Que melhor introdução para a segunda mesa redonda sobre a aceleração? Os filósofos Laurent de Sutter e Jérôme Lèbre e a investigadora em comunicação e informação Carla Batista debateram durante uma hora este fenómeno, presente em todos os sectores da sociedade: indústria, media, conhecimento, etc.

 

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No Porto, a Noite das Ideias teve lugar no Pátio do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade. Este edifício neo-clássico, construído em 1807, foi o cenário de uma rica reflexão sobre a cidade, a arquitetura e a poesia.

Porto, “cidade de luz e granito” (José Gomes Ferreira), é a capital portuguesa da arquitetura e fonte de inspiração para muitos cineastas e escritores. Mas, desde há vários anos, o Porto está a sofrer uma profunda transformação sob o impacto do turismo de massas: à medida que se enche de visitantes, a cidade está a perder os seus habitantes e a sua autenticidade. Surge assim uma resistência para reinjectar a arte na paisagem urbana.

Foi este o tema da primeira mesa redonda, com o professor e escritor Jean-Christophe Cavallin, o escritor Rui Manuel Amaral e o designer Ruedi Baur.

Uma das manifestações desta resistência é a poesia. Porque a poesia contemporânea está numa fase de renovação: regressa a lugares onde já não era esperada, para ser lida, ouvida e vista, graças a uma nova geração de poetas e performers. Uma nova poesia numa cidade em mudança?

A segunda parte desta Noite de Ideias tratou deste assunto, e começou com o lançamento da revista de poesia da Universidade do Porto: PÁ – Poesia & Outras Artes.

Depois de um jantar e duma performance do poeta Christophe Fiat acompanhada por uma guitarra eléctrica, cinco poetas e escritores foram convidados a discutir as representações ligadas às suas práticas e as formas de as subverter: a grande poeta Regina Guimarães, Rui Manuel Amaral, Christophe Fiat e dois jovens poetas franceses, Louis Dorsène e Maxime Viande, membros fundadores do coletivo [cargo].

A noite terminou com três performances poéticas, distintas na forma e no estilo, reflectindo a inventividade dos escritores poéticos de hoje. O primeiro foi Louis Dorsène que, com uma generosa contenção, leu “Y’a un trou” da sua coleção Quatre catastrophes. Maxime Viande interpretou depois um extrato poderoso de A vif, um longo poema sobre um homem que um dia decide incendiar uma floresta.

Por fim, Ana Deus, acompanhada pela artista plástica e musical Marta Abreu, interpretou textos franceses e portugueses com a sua voz distinta, emocionante e poderosa.

 

 

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O terceiro evento da Noite das Ideias decorreu em Saboia, uma pequena aldeia alentejana junto à barragem de Santa Clara-a-Velha.

Nesta região profundamente afetada pelas alterações climáticas e pela desertificação em particular, foi organizado um colóquio sobre a água pelo antropólogo Pedro Prista, professor da Universidade de Lisboa. Intitulado Aguas gémeas, o colóquio foi um convite à reflexão sobre o destino desta região e sobre a possibilidade de reinventar futuros possíveis e desejáveis.

Foi este o contexto da Noite das Ideias. Após uma primeira intervenção do sociólogo Pedro Jacobi sobre a política da água no Brasil, o filósofo Viriato Soromenho-Marques falou sobre o tema “Antropoceno, humanismo e distopia”, antes de dar a palavra a Jean-Christophe Cavallin.

Jean-Christophe Cavallin, que já tinha participado na Nuit des idées no Porto, analisou o trabalho de Bruno Latour sobre a representação política dos “não-humanos”. “Perguntou: “Fazer os rios falar?” Mas quem será a voz dos elementos naturais e como poderão as suas “exigências” ser ouvidas nos debates humanos?

A esta conferência apaixonante seguiu-se uma conversa entre Jean-Christophe Cavallin e a Professora Ana Paula Guimarães, moderada por António Guerreiro, intitulada “A Escuta Política e Literária do Mundo dos Seres Vivos”.

A Noite das Ideias terminou com o jantar-performance P A R A I S O, de Madalena Victorino, interpretado por um grupo de habitantes locais de todas as idades e dois bailarinos profissionais. Foi um espetáculo extraordinário, realizado ao ar livre ao anoitecer, um ballet contemporâneo comovente que combina teatro, dança e canto, coreografando os gestos da vida camponesa (lavar o peixe, festas) e contando a história da região.

Debate de ideias